16.5.08

Greatest Hits

Aero Willys



Helio Barbosa nasceu numa noite dolorida, pelas mãos de uma parteira caolha, no 12 de dezembro de 1916, em terra seca do Lagarto, onde os habitantes famintos acostumaram-se a caçar os répteis remanescentes. Cresceu forte e sadio, mas perdeu os pais para a tísica aos 18 anos. Ensaiava carreira militar; chegara a cabo; era organizado e prestativo. Mas o irmão mais velho, um padre de certa influência e que deveria sustentar o peso da família, pela tradição daquelas terras do Sergipe, negou a herança onerosa, influenciando a reprovação do irmão nos exames que o tornariam oficial. Resignado, Hélio cuidou da família. Fez bicos.

A próxima oportunidade foi no Banco do Brasil. Virou inspetor, famoso pela argúcia e exatidão. Corrigiu muitas agências bancárias de cidades esquecidas, como Adustina. Próspero, conheceu a filha de um fazendeiro decadente de cana de açúcar. Aproximaram-se, selaram o pacto de modos nada inocentes, formaram numerosa família, instalaram-se na Rua Maruim, ao lado da catedral e da prefeitura. Ele obteve uma posição estável e um Aero-Willys verde. Decidiu estudar na Bahia, formou-se em direito já um senhor distinto e dedicou-se à parapsicologia. Pelo menos uma vez, conseguiu deixar o seu corpo físico, feito interrompido apenas pelo rodar alvoroçado de um ônibus na sua rua, que se tornara central à medida que a cidade crescera nos últimos vinte anos. Aposentado, viajou de navio à Terra Santa e o Vaticano, chegou até a comprar uma pistola Bereta .25, e até, às vezes, a empunhava para mirar o muro.Aos 80 anos, ao menos 40 deles com uma dieta metódica, calórica, tornou-se senil. Dormia a maior parte do tempo. Fui visitá-lo.
- Lembra quando fomos passear no Aero Willis e o carro parou em frente ao Parque Cementeira? Você esperou a chuva passar e depois trocou o fusível. Buzinava duas vezes antes passar nas esquinas - falei, brincando, quando sentei ao seu lado para vê-lo almoçar. Seus olhos lacrimejavam de catarata. Peguei em sua mão. Percebi que tentava me reconhecer. No quarto, ao redor, a audiência íntima respirava em calma expectativa na atmosfera de odor higiênico e pacífico. Um lugar escudado, seu destino final. O frigobar persistente lembrava-o de tempos antigos, sem eletrodomésticos.
- Eu gosto de ler, vô, disse. Só aí é que ele assentiu, com um leve movimento da cabeça grisalha e esfiapada pelos últimos tufos de cabelos.
- E está fazendo muito certo.
Depois, voltou-se para o zumbido do televisor. Dormiu.