Aero Willys
Helio Barbosa nasceu numa noite dolorida, pelas mãos de uma parteira caolha, no 12 de dezembro de 1916, em terra seca do Lagarto, onde os habitantes famintos acostumaram-se a caçar os répteis remanescentes. Cresceu forte e sadio, mas perdeu os pais para a tísica aos 18 anos. Ensaiava carreira militar; chegara a cabo; era organizado e prestativo. Mas o irmão mais velho, um padre de certa influência e que deveria sustentar o peso da família, pela tradição daquelas terras do Sergipe, negou a herança onerosa, influenciando a reprovação do irmão nos exames que o tornariam oficial. Resignado, Hélio cuidou da família. Fez bicos.
A próxima oportunidade foi no Banco do Brasil. Virou inspetor, famoso pela argúcia e exatidão. Corrigiu muitas agências bancárias de cidades esquecidas, como Adustina. Próspero, conheceu a filha de um fazendeiro decadente de cana de açúcar. Aproximaram-se, selaram o pacto de modos nada inocentes, formaram numerosa família, instalaram-se na Rua Maruim, ao lado da catedral e da prefeitura. Ele obteve uma posição estável e um Aero-Willys verde. Decidiu estudar na Bahia, formou-se em direito já um senhor distinto e dedicou-se à parapsicologia. Pelo menos uma vez, conseguiu deixar o seu corpo físico, feito interrompido apenas pelo rodar alvoroçado de um ônibus na sua rua, que se tornara central à medida que a cidade crescera nos últimos vinte anos. Aposentado, viajou de navio à Terra Santa e o Vaticano, chegou até a comprar uma pistola Bereta .25, e até, às vezes, a empunhava para mirar o muro.Aos 80 anos, ao menos 40 deles com uma dieta metódica, calórica, tornou-se senil. Dormia a maior parte do tempo. Fui visitá-lo.
- Lembra quando fomos passear no Aero Willis e o carro parou em frente ao Parque Cementeira? Você esperou a chuva passar e depois trocou o fusível. Buzinava duas vezes antes passar nas esquinas - falei, brincando, quando sentei ao seu lado para vê-lo almoçar. Seus olhos lacrimejavam de catarata. Peguei em sua mão. Percebi que tentava me reconhecer. No quarto, ao redor, a audiência íntima respirava em calma expectativa na atmosfera de odor higiênico e pacífico. Um lugar escudado, seu destino final. O frigobar persistente lembrava-o de tempos antigos, sem eletrodomésticos.
- Eu gosto de ler, vô, disse. Só aí é que ele assentiu, com um leve movimento da cabeça grisalha e esfiapada pelos últimos tufos de cabelos.
- E está fazendo muito certo.
Depois, voltou-se para o zumbido do televisor. Dormiu.