1
No alto do pináculo municipal, o prefeito Celso Gardenal observa o movimento com uma luneta. A população enfurecida de uma cidade tropical queimou 365 ônibus em protesto contra o aumento das passagens. A fúria é cíclica; há oitenta anos, queimava-se bondes. De um jeito ou de outro, a passagem sempre aumenta mais que a inflação. O soviete supremo pede calma, mas os estudantes já estão fornicando nas ruas, numa cópula revolucionária que multiplicará a horda. So há uma solução – o prefeito manda dissolver gardenal na água da Embasa. Quinze dias depois, começa o carnaval.
2
De um escritório em Wall Street, Wilfred Midas observa as obras de construção da Torre da Liberdade. O movimento é lento. Ele usa um binóculo XZ-403 que custa o salário mensal de um dos operários da obra. No canteiro terroso, Ignácio López escarra no solo congelado e coça a virilha; acima dele, na casinha de metal, seu supervisor bebe café; na rua, um turista suíço compra uma camisa das torres gêmeas e um bibelô em forma de águia de um dos camelôs da Rua Trinity; um miasma de vapor e esgoto sai dos bueiros; enquanto isso, um fundo de investimento compra todas as ações da Sopas Anderson e decide fechar uma fábrica na Pensilvânia para reabri-la no México, com metade dos funcionários. As ações sobem.
3
Nhagô observa o céu estrelado de Darfur, no noroeste do Sudão. A noite está calma. Uma criança doente tosse levemente. O barulho de trezentos estômagos vazios se une ao choro dos órfãos, das viúvas, dos viúvos e das jovens violentadas, numa sinfonia cruel, enquanto que a 100 quilômetros dali uma patrulha do Exército sudanês entrega um carregamento de munição, bombas de fósforo e um pouco de ódio para milicianos nômades islâmicos. Nhagô tenta sorrir, mas seu coração dói: nasceu mais uma criança. Amanhã, serão 301 cruzando o deserto rumo à fronteira. Nhagô quer ser adotado por uma ONG européia e virar estudo de caso em Oxford. As estudantes lindas, entediadas, brancas e bem-alimentadas, atentas à sua história de sofrimento. Como contou-lhe Ngebo, que fugiu para a Grã-Bretanha e casou com uma das estudantes.
4
Wladimir observa o avião que está prestes a decolar na cabeceira da pista, com os pés fincados na passarela que cruza a Grande Avenida Heróica, perto do aeroporto, onde uma confusão de pistas em sentidos contrários “transporta as vísceras deste organismo fantástico”, pensa ele; Wladimir tem o rosto queimado pelo sol e usa sandálias de couro; carrega um pedaço de carne seca e um quinhão de farinha; protege-se dos bandoleiros com uma peixeira enferrujada; em meio ao tráfego, fecha os olhos e imagina uma floresta límpida, cuja umidade pungente emite uma energia esmeraldina de suor e seiva; insetos; ele tenta se concentrar no afeto dos insetos, mas um outdoor gigante grita para os seus olhos: “VOCÊ PRECISA DE STATUS”.
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