25.5.06
ADIANTAMENTOS
O manuscrito Voynich
I
- Tome o livro, segure-o em suas mãos. Sinta a capa macia. Não se incomode com o cheiro - Em seu leito de morte, Voynich me encarava com a face chupada pela doença, enquanto eu folheava o manuscrito quinhentista.
- Comprei do Colégio Romano, em 1912. Uma pechincha, os padres estavam precisando de dinheiro. Descobri que um dos primeiros donos foi um alquimista chamado Georg Baresch. Intrigado pela estranha linguagem cifrada, em 1639 ele enviou uma cópia para o estudioso jesuita Athanasius Kircher, no Colégio Romano, que acabava de publicar um dicionário de copta, um idioma etíope. Com a morte de Baresch, um amigo repassou o livro para Kircher, em 1666. Esta última carta, recentemente localizada, é a única prova da existência do livro. Durante os próximos 200 anos, o livro sem nome mofou nos arquivos do Colégio Romano, até que o Rei Victor Emmanuel II, da Itália, resolveu confiscar as propriedades da igreja. Por causa disso, muitos livros da raríssima biblioteca do Colégio foram escamoteados pelo zelo dos acadêmicos religiosos. Mesmo assim, o livro acabou em minha posse. Tentei decifrar sua linguagem, cheguei até a pensar que fosse uma farsa.. - sua tosse atarantada interrompeu o relato. Ofereci água. Do lado de fora, podiam-se ouvir os canhões nazistas bombardeando a Cracóvia.
- A carta de 1666 para Kircher alegava que o livro pertenceu ao rei Rudolfo II da Boêmia, em algum período entre 1552 e 1612. Rudolfo adorava assultos ocultos e o vendedor garantiu-lhe que o livro era uma obra secreta do frei franciscano britânico Roger Bacon. O mais provável é que seja uma obra de John Dee ou Edward Kelley, que juravam ter a capacidade de comunicar-se com anjos.
Tateei as ilustrações ásperas do livro. Plantas, estranhos mecanismos com fetos ligados a tubos, diagramas similares a galáxias. Em todas as páginas, a escrita misteriosa.
- Muitos tentaram decifrá-lo. Dizem que a linguagem é coerente com um idioma real. A coincidência de letras e estruturas é similar à estrutura morfológica padrão. Você, cuide dele. Decifre-o. Ontem, descobri a chave, estava escondida dentro da capa. Eu... - Com um último sopro, Voynich baixou a cabeça e morreu, empalidecendo imediatamente.
II
Na casa ao lado, uma mulher soltou um grito de pânico. Os primeiros tanques Panzer invadiam a cidade. Aproveitei uma distração da viúva, embalei o livro numa capanga de couro e fugi para a Dinamarca. Em cinco dias, cheguei a Copenhague. Entre um tedioso ponto de checagem nazista e o próximo, folheei furtivamente mais algumas páginas.
Conheci Voynich em 1922, quando ele já era um famoso colecionador de livros antigos. Fui contratada para limpar a casa e manter a umidade sob controle. Com o tempo, fui lendo um ou outro caderno. O Velho Voynich percebeu isso e incentivou meus estudos. Da garota pobre dos subúrbios da Cracóvia, transmutei-me, em quatro anos, numa conhecedora de livros antigos, assistente de Voynich. Sua esposa me odiava. Mas eu estava envolvida mesmo era com um açougueiro judeu, e seus mimos extraordinários naqueles tempos difíceis: peças de filé e alcatra. Uma noite, me entreguei a ele no açougue fechado, com o cheiro de sangue coagulado penetrando nas narinas e a sensação oleosa no balcão. Depois disso, a ameaça nazista e a doença de Voynich espantaram o açougueiro para a América. Voynich apegou-se ao livro e passou os últimos dias estudando sua criptografia.
A guerra poderia demorar uma vida inteira. Quem iria comprar um livro como aquele? Suspeito que a mulher de Voynich só permitiu minha fuga, mesmo sabendo que eu levava o manuscrito, por considerar a obra uma farsa inútil. Quando vi as luzes de Copenhague iluminando o céu noturno, lembrei-me de uma amiga abastada, para o abrigo inevitável, e apalpei o passaporte polonês, onde se lia: “Ileva Krenica, 26 anos”.
III
A guerra passou: do lado de fora, a reconquista soviética repercutia como uma vibração suave no andamento das coisas. Decifrei a primeira parte do livro. As ilustrações toscas e proféticas lembravam o herbário que um charlatão mostraria aos seus crédulos clientes, provando algum tipo de conhecimento mágico sobre os mistérios da natureza, alguém como o britânico Edward Kelley, nascido em1555. Ele começou a carreira prometendo transformar cobre em ouro, misturando um pó mágico oriundo de uma caverna. Aos 27 anos, apresentou-se ao respeitado astrônomo Jonh Dee, conselheiro da corte de Elizabete I, e demonstrou a impressionante capacidade de comunicação angelical. Os dois juntaram forças. Kelley ofereceu serviços ao rei Rudolfo II e outros nobres da Boêmia.
Certa noite, já um homem rico, Kelley comunicou a Dee a última ordem dos anjos: os dois deveriam assumir uma comunhão completa; dividiriam até suas mulheres. Angustiado, Dee concordou em oferecer a bela esposa a Kelley, mas, pouco depois, voltou para as ilhas britânicas. O alquimista continuou tentando transformar cobre em ouro, mas o rei Rudolfo ordenou a sua prisão no castelo Krivoklát. Três anos depois, Kelley aceitou cooperar e foi libertado, mas fracassou novamente na conversão. Rudolfo então o mandou ao castelo de Hnevín, onde ele morreu tentando escapar, em 1597.
Ao decifrar a primeira frase do livro, minhas pernas enfraqueceram e fui obrigada a deitar. "A leitura desta obra provoca danos em diferentes dimensões. A posse inócua não causará danos, mas a verdadeira chave abrirá seus poderes”, começava o manuscrito. As paredes do quarto começaram a derreter. Era 1946; as pessoas comemoravam nas ruas o final da guerra. Minha mão ficou translúcida. Senti a visão escurecer; lancei o livro no fogo mas nunca acordei para ver as suas cinzas; estranhamente, retomei a consciência em um castelo medieval. Embora não compreenda a língua dos carcereiros, este deslocamento absurdo não é o que mais me preocupa; subitamente, tornei-me um homem, e os guardas insistem em gritar "Kielov" toda vez que entregam alguma comida.
*O manuscrito Voynich atualmente encontra-se na Biblioteca Beinecke de Livros Raros, na Universidade de Yale (EUA).
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A nova juventude
Falei pra Marcinha não ficar se metendo na minha vida, mas ela insistiu tanto que contei um pouco do que se passava no meu MSN. Marcinha é minha professora de banca de português e a gente geralmente troca umas idéias depois da aula. Contei que conheci a gótica num show de heavy-metal no Ideário, depois que ela ficou me olhando. Parecia muito branca, depois descobri que espalhava litros de protetor solar na pele para obter este efeito. A gótica usava as roupinhas padrão de uma fã de Pitty: coturnos, saia quadriculada e camisa preta.
Parti pra cima e travei conversa com ela. Ofereci uma cerveja. Descobri que ela tem 16 anos e estuda no São Bonifácio. Levei a gótica até o ponto de ônibus e anotei o seu e-mail. No outro dia, teclamos uns papos muito doidos no MSN. Ela confessou que não era mais donzela e me convidou para uma visita quando sua família estivesse viajando.
No dia marcado, à noite, cheguei ao apartamento dela, na Barra, e fui recebido pelo brilho das velas pretas espalhadas pelo chão, com cheiro de parafina, e a porta do apartamento entreaberta. Na sala, DVD, TV, microsystem e umas pinturas bregas, daquelas que você compra na rua, ao lado das miçangas e bibelôs pendurados nas paredes. Nos porta-retratos só tinha a foto dela com a mãe; seus pais deviam ser separados. Explorei os cômodos e encontrei a gótica deitada, enrolada numa colcha do Megadeth. Ela jogou os panos para cima e fiquei admirando seu corpo com a visão alerta, enquanto tirava a minha roupa. Na hora da ação, estranhei porque ela ficava insistindo para a gente adotar certas poses ou virar de lado.
No outro dia, ela mandou para mim um vídeo gravado no quarto pela webcam do computador. No começo até gostei, mas depois fiquei pensando o que a galera do colégio ia pensar de mim. Na dúvida entre orgulho e humilhação, parei de responder aos pedidos de "quer TC?" dela. Isso faz uns quinze dias. Ontem, um amigo me avisou que tinha achado o vídeo na Internet.
Quando terminei de contar a história, Marcinha ficou olhando para mim com uma expressão estranha. Ela tinha a cara cheia de espinhas, embora contasse mais de 30 anos, mas ainda estava com um corpo enxuto, desejável. Levantou-se e começou a tirar a roupa.
- Professora!
- Fica quieto. Deixa que eu resolvo. Agora, se você não fizer o que eu mandar, conto tudo para a sua mãe. - Fiquei com ódio, mas gostei quando fomos para o quarto e elacomeçou a me massagear. Será que Marcinha também é gótica?
textos da coluna Ficções (A TARDE, CADERNO DEZ!), de Patrick Brock
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