28.8.06

O GELO E A FÚRIA

1 A colônia

O inspetor-geral já deve ter lhe informado sobre as características gerais de nossa operação nas luas de Saturno. O alinhamento das estações retransmissoras também pede brevidade; em uma hora, a interferência de Júpiter enfraquecerá esta linha dedicada. Cheguei à Base Titã há 5 dias, 8 horas e quarenta e dois minutos, vindo do Cinturão de Asteróides, um engajamento discreto de módulos com alta velocidade. Atravessamos a atmosfera de Titã numa cápsula retornável e fomos recebidos pelos 10 técnicos coloniais, aparentemente felizes. A válvula principal da planta de eletrólise de metano estava quebrada. Aguardavam novo comboio para continuar a extração. Enquanto isso, o Contra-mestre Adolfe mostrou-me os vistosos domos hidropônicos das instalações subterrâneas aquecidas. Reciclando pedaços do módulo de pouso, eles construíram mais uma sala de convívio, onde ganhamos aposentos eu e meu assistente, Jonas. Depois descobri que pretendiam nos vigiar, mas fornecemos a eles a exata idéia do que esperavam: dois fiscais burocratas e medrosos.

O objetivo de minha visita surpresa era identificar o motivo do segundo problema mecânico em um ano de colônia extrativa, com a mesma peça. Os gerentes acusaram falha hal no sistema lógico do módulo-mãe, mas recuaram diante das leituras de vigilância normais. Como uma válvula feita de Titânio e resistente a -250 centígrados quebra duas vezes? Os fornecedores garantiam sua excelência. A válvula defeituosa impedia a extração de metano para os rebocadores do Sistema Solar Interior, Marte e Terra, comunidades crescentes, ávidas por substâncias de fusão e conversão. A redundância é um fator a ser analisado.

O Contra-mestre conduziu passeios agradáveis pela costa de Adiri, as planícies de gelo escuro. No último dia, fizemos uma reunião alegre e declarei que meu relatório seria favorável à manutenção da colônia. Eles demonstraram alívio, cumprimentaram a minha decisão e traçaram planos para ampliação da planta, com o material de reserva do pacote inicial do módulo-mãe. Mais tarde, na sala supostamente vigiada, simulamos um entendimento mútuo sobre a idoneidade dos colonos vigiada e, depois do sono regulamentar, iniciamos os preparativos para a decolagem e nosso retorno ao conforto espaçoso dos escritórios centrais de Marte.

2 Verna T.

A fraca luz alaranjada pouco atravessava a neblina de metano e gelo de água, etéreo nitrogênio inerte, nos poucos momentos permitidos de observação real, embaçando a escotilha da unidade mecanizada, eu tremia de medo da radiação e vibrava com a oportunidade de observar o mundo alienígena, pois eu vivia na colônia, escavada a 300 metros no solo esponjoso, com seu calor exíguo de pouca companhia humana, notícias distantes e atrasadas, interferências magnéticas, a estação simplificada sob minha responsabilidade. Paredes de aço sempre a 20 graus nos corredores de labirinto cinza, monitores econômicos, rotina espartana, ar-condicionado. Acordamos quando o bip ordena (almofadas sintéticas) comemos quando a máquina processa a pasta nutritiva, quedamos refúgio ao último nível durante tempestades solares.

As coisas mudaram quando fui ajudar James C., durante um defeito na válvula de eletrólise, a 3 km da colônia. Petti Amazon, a chefe da ala nerd dos cientistas pesquisadores, os mais aplicados dentre os três grupos de trabalho, acusava James C. de ser um caráter duvidoso, caso provável de insanidade, um coringa que deveria voltar para a Estação Cinturão no próximo semestre, mas ele fez amizade com James Tiptree, o botânico, e ganhou o resto dos colonos graças a uma evolução significativa do cardápio. Ele introduziu folhas e frutos na dieta. Agradou em especial o Contra-mestre, vegetariano ávido, pouco entusiasmado com a pasta nutritiva regulamentar.

Encontrei James C. na pequena cabine climatizada do controle, perto do calor das máquinas, no centro do domo simplificado que abriga os condensadores de metano e as escavadeiras. Pareceu tranqüilo quando lembrei do avanço das horas. Logo começaria a noite gelada, Saturno engolindo o céu e -200 abaixo de zero durante quinze dias.
- E o defeito?
- Não há defeito na válvula. Você conhece os Luditas?, disse, e pediu que me acomodasse na esteira de cânhamo para poder explicar melhor.


3 A farsa

Jonas ativou os códigos ocultos, enganando os sensores dos colonos com uma decolagem falsa, transmitida pelo anulador de sinal. Protegido pelo chumbo-traje, aproximou-se da colônia para instalar receptores secretos. Enquanto isso, à minha frente, na cápsula, os monitores exibiam os primeiros dados obtidos pela farejada eletrônica de Jonas: os diários oficiais, os particulares e o Registro Geral, última instância de sabença vigilante. As capas concêntricas de dados floresceram na revelação daquela história singular, de um indivíduo chamado James C., mecânico, que trouxe livros inadequados em sua bagagem privada, na primeira leva. Por meios pessoais, C. introduziu o cultivo de cânhamo nos domos hidropônicos.

Seu primeiro aliado foi a oficial de comunicações Verna T. Eles catequizaram os outros colonos, reduzindo as atividades de operação da planta extrativa e de escavação dos tanques recipientes. Munido com a dialética libertária de um jamaicano negro, James C. convenceu os outros a mudar de perspectiva sobre o seu papel neste mundo gelado. Diante da disponibilidade de elementos (água, metano) e a auto-suficiência da usina de clonagem nos domos hidropônicos, poderiam declarar independência, com prejuízos possíveis para a Corporação. Através das escutas, acompanhei o nervosismo dos colonos depois da falsa decolagem. James C. argumentava pela declaração imediata de Zona Autônoma Temporária, transmitida para a internet pelo satélite de emergência Cassini. O Contra-mestre, os cientistas e os outros mecânicos, mais conservadores, pediam pela continuidade da farsa.

Depois da reunião amarga, Verna T. detectou o chumbo-traje de Jonas afastando-se da entrada da colônia. Jonas não teve opção senão eliminar Verna T. Seu desaparecimento causou ainda mais preocupação entre os colonos. Hoje, um elemento desconhecido derrubou as escutas instaladas por Jonas. Alguém está nos vigiando. Podemos partir a qualquer momento, mas a nova posição em órbita enfraqueceria nossa vantagem estratégica. Eu e o inspetor-geral concordamos que a colônia ainda pode ser retomada com negociação psicológica, antes que vire um escândalo.

4 Babilônia

Os espiões continuaram estáticos nos primeiros dois dias, então decretei a colônia uma Zona Autônoma Temporária; o paralelo 35 tornou-se Zubrin, nossa primeira cidade. Os cientistas hostilizaram imediatamente a Zona, mas continuaram seguindo as ordens do Contra-mestre, leal à revolução. No terceiro dia, a cápsula dos espiões decolou e tudo pareceu voltar à normalidade. A colônia abandonaria a produção de metano e dedicar-se-ia à colonização de Titã em bases libertárias.

Mas uma nova cápsula pousou e conhecemos Aleph, o simpático negociador, que ofereceu o dobro do salário se os colonos abandonassem sua demanda por autonomia. De início, os legalistas não deram sinais de abandonar o plano, mas um movimento rápido e me jogaram na saída externa. “Morra você e sua doutrina ridícula”, gritou Petti do outro lado, a abestalhada. Eu escondera um fino traje de vácuo na saída; tive de roubar um jipe para buscar refúgio na planta de metano.

Pode parecer fácil para alguém como eu, abandonado a bilhões de quilômetros da Terra, com o frio aumentando à medida que as baterias evaporam o último caldo, recitar novamente toda a dialética da minha revolução; mas a solidão exige disciplina e, ironicamente, minha sobrevivência depende agora da restauração da peça que fingi estar quebrada, a mentira que paralisou as atividades capitalistas dos colonos. O espião não sabe que eu também monitorei suas transmissões, então eu tenho dois rifles magnéticos e muitos cobertores. Iniciei os trabalhos de engenharia reversa. Estou tentando construir um domo hidropônico.

Através da Cassini, criei um website e uns caras em Bangkok acham que podem entrar com uma ação na Corte Internacional de Justiça, argumentando com base um tratado da ONU de 1969. Enquanto isso, eu os outros mantemos uma distância respeitável, exceto quando eu volto secretamente à base para reabastecer com víveres do velho Tiptree. Há até muitas órfãs querendo vir para cá me ajudar na colonização, mas o governo nega passagem, me boicotam, a Virgin Galactic se recusa a voar para cá.

KDK

24.8.06

breve o PRÓXIMO CAPÍTULO

12.8.06

Ligações Peptídicas

Já viu, Curiosidade? Novos aparatos eletrônicos, ansiedade em links, descoberta em caminhos labirínticos, cuja volta é irreversível. Espelhos cilíndricos e frases prontas. Um aviso no topo da página: outdoor virtual, sem cores, mas com o mesmo apelo. Espaços, toques ligeiros e letras trocadas. A intenção? Só constar mesmo, pois é tudo insosso. Minhas mãos transpiram e o mouse arrasta a poeira do móvel descascado. A luz sinaliza que alguém clama pela minha atenção. Ignoro o recurso, retomo a escavadeira em pixels. Olha só o contorno desse rosto. Qual seria o programa? No outro, só os olhos. Truque de quem se engana e acha que está menos qualquer coisa. Tá não. Arrasto a ferramenta, e olha lá. Ninguém arrisca algo menos qualquer coisa. Tudo é verbo flexionado em primeira pessoa. Adjetivos fermentados e arrotados ao vento.
E ainda me perguntam: por que não?
Olhe essas linhas e veja o que é possível apreender. Nefasta lacuna. Conhece o cabelo bisonho da cor de raposa fugidia, o inseto do cinema que brilha ao furar a luz do retroprojetor, o caroço da manga sem cabelos, o carro de goma de mascar, a sopa de joanetes, a fruta areada na descrição de Hemingway, o cheiro goguento, a vergonha flamejada, o aconchego insípido e as marcas de cal virgem? Relações de transgenia. Mendel não previu, mas na permuta do amor, o gene é recessivo (aa). Nesses tempos, o medo é persecutório e a felicidade, lotérica. E há quem busque o trevo de quatro folhas, ou se agarre a um pé de coelho, ou a todas aquelas mandingas das quais se é refém, quando se respira este ar matizado de cores.