30.12.06

Pinochet se safou..

27.12.06

Êxtase

(para Nathanael West)

1

Sobre a mesa, o mesmo copo; no bolso, o maço mortífero; na boca, a brasa atenuante, prazerosa, de câncer esfumaçado. É o início da noite.

Do lado de fora, o vento sacode os postes em um inverno que teima em não nevar. Moro num pequeno quarto no centro de Newark e do outro lado da rua posso ver o movimento dos traficantes, os faróis dos carros que páram rapidamente para buscar crack, coca, ignorantes do vento ou do frio, incansáveis. Talvez eu devesse buscar algo para mim também.

Sou um zelador, faxineiro se preferir. Limpo os escritórios de um centro empresarial em Jersey City, perto daqui, onde a especulação imobiliária criou apartamentos de um milhão de dólares sob os escombros do entulho tóxico de um passado siderúrgico cromado, uma industrialização decadente que agora destrói os rios e o solo de algum outro país, talvez a China. Costumava ser casado, mas um incidente incômodo com cartas e mentiras me jogou para cá, neste cantinho barato no meio da pior parte da cidade.

Hoje aconteceu algo extraordinário. Costumo trabalhar no turno da noite, das sete às duas da manhã, mas a enfermidade de um colega forçou-me a trocar de horário. Recebi ordens de limpar os banheiros, levar a carga de lixo da manhã ao compactador e ficar na espera para qualquer eventualidade. Na salinha da limpeza temos uma pequena TV preto e branca, eternamente sintonizada no show de Oprah.

Por volta do meio dia, recebi uma chamada. Alguém derrubou comida no oitavo andar. Juntei os equipamentos e subi até o topo. Esperava encontrar um programador gordo ou um chefe rabugento, mas no departamento indicado encontrei uma jovem pálida, juntando os pedaços de macarrão do chão de maneira incômoda.

2

A moça tinha olhos muito verdes, do tipo ligeiramente oblíquo e que parecem apontar para cima nos cantos. O cabelo loiro escorrido, um vestido empresarial amarronzado e sapatos de salto baixo. Quando me viu, levantou-se desajeitadamente e sorriu. Esbocei a mesma nulidade de sempre e me passei o rodo Hydro-VAC 2078, sugando os pedaços de capeletti rapidamente. Depois me agachei para retirar as manchas.

Levantei os olhos e dei de cara com as pernas dela, a pele muito clara, a carne pulsante e levemente corada. Levantei-me. Ela continuou parada, me olhando casualmente, o rosto de feições aquilinas, elegantemente sofisticado.

Imaginei o que ela deveria estar pensando ao me ver, um cara comum, 45 anos, olhos cinza, cabelo desaparecendo, o nariz enlarguecido de pele extra por causa da idade, olheiras, poros grandes e escancarados. Os poros dela estavam todos fechados.

A cena devia estar estranha, então ela virou o rosto e murmurou um agradecimento. Recolhi meus equipamentos e voltei para a salinha. Tentei me concentrar na TV. Oprah entrevistava uma vítima de violência familiar que havia sido queimada pelo marido. Sua pele avermelhada e em reconstituição lhe dava um aspecto de boneca partida. A imagem permanecia mas as palavras ficaram nubladas, e pouco a pouco voltei a pensar na moça.

Ao chegar em casa, no início da noite, preparei meu jantar, um pouco de papa de aveia, canela, e sentei para comer. Quando terminei a refeição e coloquei a tigela na pia, liguei a TV, mas nada aconteceu. Voltei o olhar para a pia e notei uma imagem que se formava nos flocos de aveia umedecidos, algo como um ícone, um tanto irreconhecível no início mas que se definia cada vez mais à medida em que eu me concentrava.

3

Era a imagem de Jesus, como se fosse uma lembrança de infância, do catecismo, de religião perdida. Os olhos piedosos apontavam para cima, enquanto o rosto contrito, numa expressão de sofrimento, tinha na base as mãos abertas do profeta, as palmas para cima e a oferecer redenção.

Quando a imagem tornou-se inteiramente clara, me afastei horrorizado. Um horda de baratas cascudas voara do ralo da pia e a enchera com seus corpos betuminosos, espalhando-se pelas paredes da cozinha. Pisoteei os insetos freneticamente, esfregando seu caldo vital contra o chão até que fechei os olhos. Quando os abri, tudo havia desaparecido. Apenas a TV, que antes estava silenciosa, a falar de nevascas no Colorado e o prato com os restos de aveia amorfos. E o vazio.

Pisquei muito, esperando que tudo voltasse a ser como antes. Depois tive um pensamento estranho, sobre como as coisas eram antes; esperava minha mulher chegar do trabalho, bebíamos juntos, talvez um cigarrinho e uma refeição boa, quente, como ela sabia preparar. Amaldiçoei as mentiras.

Tivera uma visão? Acho que estou enlouquecendo. Fui até a janela. O movimento continuava. Um deles, um negro de cabeça raspada, brilhante, casaco espacial ultra-acolchoado, me percebeu na janela e encarou de volta com as pálpebras semicerradas. Começou a chover. Tivera uma visão?

Não me preocupei com casacos ou capas, apenas desci até o térreo, atravessei a rua. Todos eles pararam ao notar minha aproximação. Até os carros pararam. A chuva parou. O tempo, entretanto, continuava. Comprei uma pedra e voltei para o apartamento. Mal sabia como usá-la, mas eu sabia que tinha de ver de novo. Fumei a droga e sentei na mesa da cozinha, mas tudo que eu pensava era na loira do escritório, suas pernas coradas, seus poros. Lindos poros. Minha esposa tinha poros abertos, cheios de cravos.

Não consegui chorar, mesmo sentindo um rio morto empurrando as comportas da minha contrição áspera. Enquanto isso, ao meu redor, as paredes derretiam.

Miss Lonelyhearts

18.12.06

AKL,

Lembrei de você.

14.12.06

Ramadi

Para Raymond Carver

As cartas chegaram juntas, no meio de contas a pagar e ofertas de cartão de crédito, como todas as coisas cotidianas do correio. A primeira era uma carta do filho dela no Iraque e a segunda, do departamento da Defesa. Abri a segunda.
“Lamentamos informar à Sra. que seu filho Jason Wurlitz faleceu em combate na Província de Al-Anbar, próximo de Ramadi...”
Respirei fundo, larguei a carta na mesa e fui até a cozinha servir um Jack Daniels puro. Depois de uns goles, comecei a pensar melhor. Ele era meu enteado. Conheci Liza há uns dois anos, quando ele já estava em treinamento num desses campos militares com nome de general heróico. Então mal o vi, exceto pelos jantares de Natal, quando ele me olhava desconfiado do meu uísque e do meu cigarro. Eu sabia que ele estranhava o fato de que sua mãe, corajosa mãe solteira que o criara em meio a dificuldades e com todo o carinho do mundo, resolveu juntar os trapos com o zelador da escola municipal. Mas eu não estava nem aí. Ele que explodisse em alguma armadilha numa estrada desértica do Oriente Médio.

Só que agora, segurando a missiva com a tenebrosa notícia, eu me sentia menos arrogante e mais preocupado. Como é que eu ia contar para ela? O moleque era seu único filho – aos 45, já não podia procriar depois de ter tirado o útero. Mas o que ela esperava? As pessoas mandam seus filhos para a guerra e pensam que será um passeio na praia. Quem me dizia isso era um português maluco que conheci quando trabalhava limpando escritórios em Jerséi City. Fumávamos uns cigarros tremelicando de frio e ele me contava essas histórias de peixe, de pescaria, de como sobreviveu a um naufrágio na costa de Moçambique se agarrando a um farol no mar, o corpo arranhado pelos mariscos até que as nuvens fugiram do céu e sobreveio a calmaria; enfim, mas ele gostava de dizer que os americanos acham que a guerra é videogame, que é fácil, e se espantam quando seus filhos voltam para casa em caixas de metal, enrolados na bandeira vermelha, azul e branca.

Enquanto eu pensava nisso, uma luz brilhou do lado de fora e ouvi o barulho do carro chegando na garagem. Escondi a carta embaixo da almofada na poltrona e sentei lá, morto de medo, o copo ainda na mão. A porta abriu e ela entrou cheia de sacolas.
- Bob! Comprei um casaco novo pra você e umas frutas, você está precisando comer mais frutas, em vez de ficar aí fumando e bebendo...o inverno está chegando, temporada da gripe, aí você fica tussindo e não me deixa dormir.
Ela estava radiante, devia ter fruído de um dia esplêndido na sorveteria, onde passava o dia servindo iogurte congelado com granola, nozes, amoras, morangos.
- Alguma carta pra mim? – perguntou e eu gelei. Havia esquecido a outra carta dele em cima da mesinha da sala. Ela captou o envelope e o abriu ávida.
- Carta de Jason! Olha só, ele diz que as coisas estão mais tranqüilas, o Natal está chegando e vamos ter um jantar especial aqui na base, com peru e molhos e purê de batata e quem sabe um pouco de vinho...na lanchonete da Halliburton só tem cerveja aguada... – deu uma risada – acho que o tenente gosta de mim, me tirou das patrulhas, estou fazendo trabalhos perto da base, tarefas humanitárias, eles dizem...
Ela continou lendo e fui diminuindo até me sentir uma formiga naquela poltrona imensa, acolchoada, um modelo padronizado “Preguiçosa” onde milhares de zés ninguéns como eu estavam sentados na mesma hora, morrendo aos poucos de doenças cardiovasculares ou coisa assim. Sequei o copo de uísque e acendi um cigarro.

Ela terminou de ler a carta e se jogou no meu colo, deu um beijo estalado no meu rosto.
- Estou feliz que Jason encontrou seu caminho. Teve uma época que eu achava que ele ia acabar virando criminoso, ahá, porque as crianças ficavam provocando ele na escola, “você não tem pai, você não tem pai”, são uns diabos maldosos. E você, tem alguma novidade?

Se o mundo parasse de rodar naquele momento eu agradeceria. A carta embaixo do assento queimava como algo incurável, uma enfermidade súbita. Como é possível se destruir a felicidade de uma pessoa?
- Eu te amo.
Ela me beijou. Depois fomos para cama. Talvez amanhã, pensei, eu conte tudo. A felicidade, mesmo que efêmera, é importante demais para se estragar. Fizemos amor como se fosse a primeira ou a última vez e dormimos na tranqüilidade, como os sobreviventes de um naufrágio quando encontram a praia salvadora. A carta sobre o filho dela me atormentava, mas repeti para mim como um mantra até perder a consciência em nossa cama confortável: talvez amanhã, talvez amanhã.

Victor Burton

12.12.06

Sensatez vinda da ilha.
Assino embaixo.

7.12.06

no dos outros, é refresco