4.2.05

Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.

Herberto Helder, As Musas Cegas.




INVENTÁRIO NOTURNO

Gladiadores combatem venenos,
Em noite que não chega a ser minha.
A potência misteriosa dos símbolos
Há tempos não embala, carboniza
Os últimos dedos, como frutos podres
Pelos ébrios canais redentores
De órbitas que colidem com órbitas,
Imans impugnados pelo sonho,
Qual espada em osso,
A isso damos o nome de colisão.

A noite é ingênua como uma flauta
E duas crianças, amigas, a correr.
Mas as lesões das paisagens ficam no corpo,
Como coisas que nunca serei.

A noite perambula pelos quartos, sedenta,
Guarnecida de margens.
O som do plancton no ventre,
O mistério como fonte
De apreensão centrípeta do mundo.

A noite, esta ciência farta,
Engenha as peças
Da nobre balística do nada.

O teatro segue nas artérias,
Sem roteiro, suicida,
Entre périplos do sono e do espírito,
Desviando e retendo farsas.

Me pedem um conselho:
“Grite e vá embora,
mas não se esqueça da bomba
em cada cérebro”.

Prefiro a palavra “crânio”
e o vôo dos cavalos.

“Enjoy yourselves”,
a noite é grata a seus hóspedes.
Menta e jazz, seus diletos gritos.
Sou contra.

Me agarro a coisas quase hipnóticas.
Há sempre flores que nascem estranhas,
Meandros cegos, veementes, inóspitos.
Esta paisagem de ossos distorce o tempo,
Hóspede que somos das suas entranhas.

Nos deparamos
Com o silêncio final de nós mesmos,
Flecha que irrompe do nada
E atravessa conosco
Todas as noites sem fim.

André Setti

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