14.4.06

Agonia e fé no calvário do Monte Santo

Agonia e fé no calvário do Monte Santo

Romaria existente há mais de 200 anos continua, mas está menos fervorosa e com a estrutura descuidada

PATRICK BROCK
ENVIADO ESPECIAL

“Monte Santo é um lugar lendário”

Euclides da Cunha, Os Sertões

MONTE SANTO – Os romeiros chegam em ondas de fé, prontos para o calvário de 3 km de extensão e 500 metros de altitude. Alguns enfrentam as pedras com os pés descalços, para ampliar o sofrimento. No alto, o pináculo do fanatismo cristão sertanejo, um local místico, ao qual se atribuem milagres e graças alcançadas. O burburinho de vozes, fogos de artifício e vendedores de água contrasta com a pureza bicentenária da igreja de Nossa Senhora das Dores. Ao chegar no cume da montanha, arrasado pela altitude e os pedregulhos traiçoeiros da escalada penosa, o penitente perde-se num misto de êxtase religioso e auto-imolação que inspirou o próprio Antônio Conselheiro, quando este formou seus dogmas sacrificantes e proféticos, responsáveis por atrair milhares de seguidores fanáticos.

Em nome da fé que paga as promessas e busca milagres, milhares de romeiros vem de povoados e cidades próximas, e até de outros estados, para subir o Monte Santo, numa tradição que se renova com os jovens e é mantida por senhores idosos, risonhos da vida enquanto galgam a via sacra do sertão. O movimento começa à meia-noite da sexta-feira da Paixão e vai aumentando até atingir o ápice às 6 horas da manhã. Romeiros em pleno fervor religioso e jovens barulhentos misturam-se – o objetivo é purgar os pecados com a escalada extenuante.

Neste momento são 3h30 da manhã e os primeiros ônibus chegam à praça principal de Monte Santo (300 km de Salvador).
- O caminho de Deus é o caminho da dor - diz a lavradora Maria do Carmo, 48 anos, do povoado de Mandacaru. Maria vem ao Monte Santo todos anos e já chega cantando, com a voz ressecada de sertaneja. Sua reza é de uma melancolia quase feliz e ela lança sua harmonia antes de acender um cigarro de palha:

“Quem foi que nasceu
Na noite de Natal?
Menino Jesus,
Para nos salvar
Bendita seja
A novena meu Deus
Menino Jesus
Na Lapa nasceu”

Na entrada do caminho sagrado, os grupos vão aumentando em tamanho e freqüência. No sopé, preparam-se para a escalada o moto-taxista Vildemário Silva dos Santos, 30 anos, nascido e criado em Monte Santo. Depois de uma década de ausência, ele voltou para escalar o monte, porque “é sagrado”. Há pureza em sua voz.
- Vim agradecer a Deus por estar vivo e trouxe meu amigo e irmão aqui - Ao seu lado, o artesão de 37 anos Roberval Lima Gonçalves, feição séria e olhar descansado. Ele vai pagar promessa, acendendo uma vela para Nossa Senhora quando chegar ao cume.
- Estive muito doente, com problema de depressão, e hoje eu agradeço muito a Deus por estar aqui - e os dois partem em disparada, Vildemário a incentivar Roberval. Depois chega Luciano da Silva, 17 anos, morador de Monte Santo, acostumado a enfrentar o caminho desde os sete anos.
- Tem gente que sobe aí pra bagunçar, quebraram os santos lá em cima, isso acaba um pouco com a história. Esse ano eu vou subir só pela tradição mesmo. Mas teve um ano que subi porque um tio meu estava preso, fiz a promessa pra ele ser libertado.

Na praça, em frente à igreja de Monte Santo, os vinte remanescentes da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Santa Cruz preparam-se para subir. Usam uma espécie de manto roxo, parecido com um hábito dos capuchinhos – a romaria foi iniciado por um frei capuchinho, Apolônio de Todi, em 1775. Dois deles levam cajados com lanternas e um terceiro, no centro, empunha a Santa Cruz. São cerca de 20 devotos, idosos na maioria. Um deles, de torso anormal e olhar compenetrado, bate a “matraca”, um tipo de reco-reco destinado a anunciar o início oficial da romaria.

- Louvemos a Santa Cruz.... – entoam os integrantes da irmandade, enquanto a matraca soa atrevida: “tleco-tleco-tleco-tleco...”. Começa a subida dos Irmãos. A fila engrossa e uma multidão segue a Irmandade. A primeira etapa é a pior: o ângulo de 20 graus cala os Irmãos. Alguns deles ficam para trás, ofegantes, um irmão idoso atrasa a procissão. Na quarta capela (de um total de 25), breve parada. A segunda etapa segue-se mais tranqüila na planura relativa do terreno. A Irmandade segue em ritmo acelerado e os primeiros raios de luz aparecem no céu.

A última etapa é dolorida e muitos ficam pelo caminho. Já se vê a cidade lá embaixo, diminuída, a igreja matriz agora parece caber na ponta de um dedo. Ao chegarem no topo, um santuário recebe os romeiros de portas abertas, mas muitos contornam a igreja branca como se fossem muçulmanos em volta da pedra sagrada em Meca. Alguns acendem velas, os recibos de promessas cumpridas, enquanto outros juntam a cera derretida em novelos presos a barbantes, como uma pescaria de sebo.
- A romaria antes era mais forte. Todo mundo rodando a igreja, e rezando - diz o aposentado Valter Martins dos Santos, 75 anos, natural de Monte Santo e residente em Camaçari. No lado esquerdo da nave, na capela cumeeira, dois diplomas do mesmo indivíduo: um de 1968, de um curso para vigilantes noturnos em São Paulo, e outro de 1984, certificando o proprietário como detetive profissional. Entre os dois, algumas linhas de envelhecimento no rosto da foto e o olhar mais cansado. Mudos testemunhos de graças alcançadas, os diplomas dividem espaço com as toscas réplicas de pés, braços, mãos e cabeças. Na parte central, diante das imagens piedosas de Nossa Senhora, uns poucos beatos e beatas rezam em voz baixa, o rosto contrito, as mãos unidas e o olhar pedinte, elevando-se aos céus.

Já são 6h20 e a coluna de fé domina o caminho no monte. O topo da montanha enche-se de gente e jovens iconoclastas fazem piada no caminho dos romeiros. Há um clima de festa e não de respeito, com o lixo nos arredores e os fogos de artifício que pipocam no céu. Quarenta minutos depois, os Irmãos descem o morro em meio à cantoria do louvor e das matracas, carregando as imagens de Nossa Senhora das Dores. Outra multidão segue os Irmãos. O Sol abre seus raios sobre a paisagem do sertão agora verdejante, refletindo nos açudes cavados para o período das chuvas. É um tempo de esperança e renovação. O fluxo continua.

Romaria iniciou-se em 1775

“Aqui não se chamará mais Serra do Piquiriçá, e sim, Monte Santo”, decretou, do alto da montanha, o frei capuchinho Apolônio de Todi, em 1775. Vindo da missão de Maçaracá, na época uma aldeia indígena e hoje a cidade de Euclides da Cunha, Todi desejava ampliar seu trabalho missionário para as terras da fazenda Lagoa da Onça, mas o povo não compareceu para assistir à sua pregação: não havia água suficiente. Foram então para a Serra do Piquiriçá, terra de aventureiros em busca do Eldorado e onde a água abundante garantiu a audiência.

Impressionado com o aspecto da montanha e convencido de sua semelhança com o calvário de Jerusalém, Apolônio de Todi organizou uma procissão de penitência para levantar um cruzeiro no alto da montanha, no dia 1 de novembro de 1775. No caminho, os fiéis foram açoitados por fortes ventos e plantaram 25 cruzes: a primeira para as almas, as sete seguintes para as dores de Nossa Senhora, e as 14 restantes, para a paixão de Cristo.

Segundo o relato da lenda de Apolônio, após a ameaça da ventania, uma nuvem luminosa surgiu no alto da montanha. Era o sinal: o frei ordenou a construção da capela, no alto, para Nossa Senhora das Dores. Ajudado pelos moradores dos povoados próximos, Apolônio erigiu a fabulosa via sacra na montanha sertaneja, obra posteriormente completada em 1791 e incrementada pelo trabalho fervoroso dos habitantes da cidade do Monte Santo, cada vez mais numerosos, em virtude das seguidas romarias da Semana Santa, pois o frei decretou que, “nos dias santos, venham visitar os santos lugares, pois vivem em grande desamparo das cousas espirituais”. Quando explodiu a guerra ao arraial de Canudos, Monte Santo serviu como base para as tropas republicanas que encerraram o sonho fanático dos seguidores do Conselheiro.

Atualmente, o santuário é que está desamparado, embora ostente uma vistosa placa com o nome do Instituto do Patrimônio Histórico-Artístico Nacional (IPHAN) e promessas de reforma. A ação de vândalos, há dois anos, forçou a retirada das obras de arte sacra das capelas, agora encerradas na segurança da igreja matriz de Monte Santo, abaixo do santuário. Em seu lugar, meras fotografias. (P.B.)

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