21.7.06

O Diário de Dang Thuy Tram

1

Doc Phu, 1970

- Não queime este aqui. Já tem fogo dentro dele. Os olhos inexpressivos do tradutor Hieu se espremeram num movimento de dor. O barril na minha frente cheirava como gasolina rançosa e cinza de celulose na selva calcinada de Doc Phu. À primeira vista, o livrinho não parecia de grande valor estratégico: capa de couro manchada de sangue e letra miúda em vietnamita. Atendi ao pedido de Hieu. horas depois, deixamos o campo de batalha fuliginoso, com cheiro de nitratos, rumo à segurança relativa de Saigon.

Nos intervalos dos interrogatórios de prisioneiros, Hieu trouxe alguns livros vietnamitas, com o propósito de ensinar-me um pouco de sua língua. Afastei as cartilhas e pedi que traduzisse o diário. Começamos devagar, mas em poucos dias a história da doutora do Exército Popular do Vietnã Dang Thuy Tram ganhou mais detalhes. Tinha 27 anos; nasceu em Hanói, numa família próspera de médicos, voluntária no campo de batalha da Província de Quang Ngai desde 1967. O diário começa em 1968, logo depois da ofensiva Tet. O resto nós completamos: morta com um tiro na testa durante ataque ao acampamento do hospital, enquanto dava cobertura para a fuga dos seus pacientes. Não respondeu aos gritos de “chieu hoi” (largue as armas). A encontramos com um rifle SPK enferrujado e uma bolsa de lona onde guardava o diário.

Uma noite, após horas de interrogatórios exaustivos, tomamos umas cervejas e Hieu me mostrou a transcrição que fizera da abertura do diário: “Tive de fazer uma operação de apêndice sem analgésicos. Só alguns tubos de novocaína, mas o soldado ferido nunca chorou ou gritou. Ele continuou a sorrir, me encorajando. Vendo o sorriso forçado em seus lábios secos e imaginando a fatiga, senti pena. Alisei seu cabelo suavemente. Gostaria de dizer: pacientes como você, que não posso curar, são os que me causam mais tristeza, e sua memória nunca fenecerá”.

2

Saigon, 1971

Eu passei por todas as investigações para ocupar meu posto na Inteligência no Exército dos EUA. Era um candidato ideal a combater o comunismo, como o filho de uma família militarista, voluntário da pátria, americano leal e crente na teoria do aterrorizante efeito dominó.

Por isso, não desconfiaram quando investiguei os registros, pouco depois de encontrar o diário, e descobri que Tram foi assassinada propositadamente, para infligir um golpe à moral dos vietcongues locais. Antes de morrer, ela já era uma heroína para os insurgentes. Naquela noite, pela primeira vez, não consegui dormir e levantei-me com os olhos inchados para o chiado das turbinas de um B-52 sendo carregado com 27 toneladas de bombas.

Troquei as moscas, a rádio Voz da América e a cerveja Lon-Pin pelo estudo da língua vietnamita, traduzindo trechos do diário sem o conhecimento de meus superiores. Eu sabia que eles me acusariam de simpatizar com o inimigo, até reconhecia na garota certos traços do que os colegas na inteligência chamavam ideologização socialista de Ho Chi Minh, mas o purgatório de Tram passou a ser o meu também, à medida que a curiosidade deixou de ser uma desculpa convincente até para mim mesmo.

Enquanto os bombardeios americanos aproximavam-se diariamente do hospital de batalha, Dang Thuy Tram escreveu que “a morte estava tão perto, as bombas desnudaram as árvores e despedaçaram casas. Aquele cachorro do Nixon é um tolo e um maluco em ampliar a guerra. Somos todos humanos, mas alguns são tão cruéis que querem o sangue dos outros para regar a sua árvore dourada”.

3

Dallas, 2005

Acho que foi quando comecei a ler o diário de Dang Thuy Tram é que meu respeito pela autoridade começou a desintegrar. Depois, ao sair do exército, juntei-me ao FBI e denunciei a corrupção no laboratório onde eu trabalhava, até que o governo ou o anticomunismo não significassem mais nada e o choro de todas as noites de cadáveres dilacerados e execuções sumárias se dissipasse o suficiente para que eu voltasse a existir. Falei do diário, mas os repórteres só estavam interessados nos podres do birô federal de investigação.

Dois dias antes de morrer em confronto com as tropas americanas perto de Duc Pho, Tram escreveu pela última vez para o misterioso M., que supomos ser o seu namorado perdido: “Não sou uma criança: já estou crescida e forte em face das dificuldades, mas neste instante, o que quero é a sua mão a cuidar de mim, ou de um amigo próximo, ou apenas a mão de uma pessoa que eu sei que é boa. Por favor, venha e segure a minha mão quando eu estiver tão solitária. Ame-me e dê forças para atravessar as partes difíceis da estrada adiante”.

Meu irmão sugeria que doasse o diário para uma biblioteca, um repórter do Washington Post me dizia que seria impossível encontrar a família Tram, mas, trinta e cinco anos depois, tive a honra de devolver os diários à mãe da jovem cirurgiã, no Vietnã, onde eles viraram um sucesso instantâneo, vendendo mais de 400 mil cópias. Para mim, continuram sendo um relato da ideologia com face humana, de alguém amaldiçoado pela história. Não me orgulho de ser o agente de sua redenção.

Nos últimos tempos, acho que voltei a dormir. Pelo menos uma vez, acho que Tram apareceu em meus sonhos, mas ela nunca disse nada, apenas chacoalhou a peneira de arroz e sorriu, assim, como se fosse um dia agradável de verão.




* O diário de Dang Thuy Tram foi devolvido para sua família pelo sargento Fred Whitehurst em 2005, após ser catalogado pelo Arquivo do Vietnã na Universidade Texas Tech.

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