14.10.06

Vida Noturna

A gripe já batia em retirada, sentia-me melhor, dois dias de superalimentação fizeram a diferença. Tranco tudo em meu quarto no hotel-cortiço, visto o casaco de couro, cruzo com um dos serial-killers de plantão na escada, enlouquecendo aos poucos nos cubículos fedorentos, ganho a rua, o vento sopra da Baía de San Francisco. Na primeira esquina, colado com uma loja de DVDs pornógraficos, encontro Reginald, um negão estrábico com aquele olhar perdido dos sem-teto.
- E aí?
- Na luta. Tem um cigarro?
Passo o maço de Marlboro Lights, meu veneno de 5 dólares.
- Vai fazer o quê hoje? – pergunto.
- Sei lá. Tomar uma sopa no Exército da Salvação. Três dólares ajudariam...
Simulo uma expressão de “desculpe, estou sem grana” e me despeço dele. Anotação mental: tomar cuidado com os sem-teto. Sempre estão em busca de algo, nada é gratuito, nem a amizade. Mais dois quarteirões, chego à esquina da Rua Folsom com a Sexta. Mais sem-teto, flanando diante dos edifícios de moradias subsidiadas.
- Você tem um cigarro? – pergunta uma negra de obesidade mórbida. – Hoje é o meu aniversário, você não tem um dólar pra me ajudar?
No começo é pitoresco, mas depois de uma semana enche o saco. Simulo outra expressão de compaixão e sigo em frente. Eu também estou desempregado.
Iludido pela noturnidade precoce da farra americana, chego cedo demais na boate que anunciava dancehall e reggae. Os organizadores me recebem na porta e indicam um bar do outro lado da rua pra tomar uma cerveja enquanto a música não começa. Clássico: balcão com luz indireta, um DJ rodando música eletrônica. Tomo uma cerveja Stela Artois, deliciosa e cara, depois de apresentar minha identidade – menores de 21 não têm vez nestas bandas.
Um casal bebe ao meu lado, conversando animadamente. Faço amizade com eles, conto minha história, faço minha jogada em busca de um pouco de companhia; aquela música do Cazuza não poderia estar mais errada: “viver é bom, nas curvas da estrada. Solidão, que nada...”.
O casal que puxei papo são irmãos. O cara, Larry, constrói cenários para uma prestigiada companhia de teatro local. Amistoso, mostra fotos dos cenários no celular. Teço elogios sinceros: “parece pedra mesmo”. Saímos para um cigarro no frio noturno, enquanto um grupo de mexicanos dá uns tapas na pantera diante de uma viatura do departamento de Polícia de San Francisco, um “cruiser”. O policial parece entediado. Larry puxa papo com os mexicanos, que vieram de Richmond, subúrbio do outro lado da baía, uma das cidades do anel de violência e pobreza anglo-saxã que cerca a pungência turística de San Francisco. A situação começa a ficar perigosa: o cruiser toca as sirenes, o famoso “peouw...”, o aviso breve e sonoro. Os mexicanos entram no bar, um por um. Me despeço do último, com a indumentária fantástica e original dos despossuídos americanos: boné de lado, roupas esportivas, calça folgadona e tênis espaciais.
- Valeu cara, tudo de bueno.... – arrisco meu espanhol macarrônico.
- Yeah man, see you... – e entra no clube. Respiro fundo. É meia-noite, auge da vida noturna. O frio treme minhas pernas. Volto para dentro. O leão de chácara, um negro claro e de fala rápida, metralha algo para uma garota menor de idade:
- Você vai me matar comissoaí gata, identidade falsa pode medarcadeia...
Acima, os edifícios de escritórios brilham com a vibração das empresas de Internet trabalhando: Google, CNET, dezenas de empresários iniciantes com os olhos vidrados de anfetaminas e programas de computador enquanto o asfalto pulsa, como se estivesse à espera do grande terremeto que um dia reduzirá tudo isto aqui a escombros fumegantes.

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