12.1.07

Gélido

- Diga que me ama.
A garota de olhos muito escuros não parava de afagar o cabelo dele. Enroscados, ofegavam.
- Você não quer me amar. Não precisa me amar - respondeu o soldado.
Ela abandonou a carícia, levantou-se e foi até a janela. Ele ficou na cama admirando seu corpo.

Do lado de fora, um festival de cores iluminava a rua inteira, escorrendo para dentro do quarto uma massa difusa de letreiros luminosos a anunciarem shows da Broadway, novos veículos utilitários, hambúrgueres de noventa centavos. Nesta modulra, as linhas dela detalhavam-se ainda mais. Um corpo jovem e sadio. O quarto de hotel custara ao soldado mais de cem dólares, era pequeno e desprovido de luxo, mas ficava no Times Square, o coração da cidade. Perto dali repousava o centro de recrutamento onde vendera sua alma para a guerra em troca de três mil e quinhentos por mês. Ela voltou-se para ele e acendeu um cigarro, lançando o maço e isqueiro com desprezo na mesinha. Os dois deslizaram até o anel. Ele levantou-se e foi até a mesinha, sem pressa, e pegou o anel. Analisou a superfície dourada com sua pedra solitária, um diamante pequeno e barato.

- Você vai embora e não vamos nos ver mais. Eu não vou esperar por você. Eu não quero ficar sabendo da sua morte e não poder te ver porque você vai estar em pedaços.

Ela desafiava a sua coragem. Ele devolveu o anel à mesinha e pegou um cigarro do maço para sentir seu aroma. Ele havia parado de fumar. Virara uma massa de músculos, o cabelo rente e a vitalidade de um touro bem alimentado. No indicador surgira um calo de lembrança de todas as horas de prática de tiro. Sempre no alvo. Enquanto isso, assustada com a sua apatia, ela começou a vestir as roupas, camada por camada, até que parecia usar uma armadura. A temperatura caíra do lado de fora. Ele trancou-se no banheiro e iniciou o banho. A água queimava a pele. Sentiu a derme avermelhando. Ouviu ela bater a porta com um estrondo.

Ao sair do banheiro o quarto estava vazio. Descobriu com satisfação que ela levara o anel. Quanto tempo demoraria para ele ser substiuído? Vestiu-se também, camada por camada do uniforme desértico. Saiu do hotel carregando a sacola de lona e caminhou até a Estação Pensilvânia. As luzes ainda brilhavam mas a rua morrera. Policiais baculejavam um negro na vitrine do Burger King. Táxias escorriam preguiçosos pela Broadway. Acima de tudo, o telão anunciava a incrível oferta do novo Chevrolet Tahoe, o único com proteção lateral e consumo de 10 quilômetros por litro. Ele parou, mesmerizado pelo anúncio. Logo ele iria estar lutando uma guerra que sustentava aquela ostentação de aço, vidro e plástico, bancos confortáveis, potência de hidrocarbonetos. Será que algum dia poderia comprar um carro como aquele?

Na porta da estação, um casal se beijava apaixonadamente. Ele sentia-se invencível. Se cortasse a mão naquele momento, o sangue congelaria na hora. Seu trem partiria em dez minutos. Talvez fossem os últimos dez minutos do resto de sua vida. Mas sua mente estava limpa, como o mecanismo lubrificado de uma arma à espreita, prestes a disparar. Enquanto isso o casal ao lado soltava pequenos gemidos de uma despedida demorada. Quando os alto-falantes anunciaram o embarque de algum trem para Boston, eles abandonaram o abraço e ela acariciou delicadamente o rosto dele.
- Eu te amo, disse ela. Beijaram-se pela última vez. O soldado virou as costas e, sem que seu trem sequer tivesse chegado, caminhou para a plataforma.

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