COINTREAU
No centro da cidade amortecido de ócio e frio, de ruas assombradas e zonas de acesso restrito, de gente que parece de plástico, de artesanato ocupando o asfalto, uma menina-moça-mulher se entrega em sacrifício a um cara, um eu qualquer; a dor de que ela foge lhe retarda os passos, a fala, coada, se refaz a todo instante, e ela decide intervir sobre o próprio corpo e sobre o meu; um arrepio nos abala a pele; ela evita me olhar nos olhos, como se escondendo, se constrangendo a transar contra a vontade em troca do abrigo de meu quarto, se forçando a conter a angústia que a sufoca, absorta em seu flagelo velado; ela goza quieta, sente o nosso amor incongruente, ternura tanta que tortura, levanta a blusa e mostra os seios, dois ciclones pequenos, alaranjados, pede para ouvir um vinil de jorge ben
e me exibe uma surpresa
cristalina e transparente,
uma ponta de esperança
na nossa noite-criança,
o tesouro engarrafado
que na calçada encontrou
e me trouxe de presente,
a metade de um cointreau;
momento de aquecimento no meu colchão de solteiro; soa longe o sofrimento, como rinchar de pneus.
Wladimir Cazé
(conto publicado na edição de 28/10/2004 do caderno "dez!", do jornal A Tarde, de Salvador (BA)
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