28.7.05

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28/07/2005
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Ficcões

A fugitiva

Primeiro foi o pânico e todos aqueles corpos despedaçados na escuridão da fumaça sufocante. Depois, nas escadarias da estação, entre a tosse e os gritos de dor, a idéia, tão perfeita e oportuna que se tornou irrecusável: virar outra pessoa e nunca mais olhar para trás.

Deixei as ensangüentadas sirenes histéricas e pequei o primeiro táxi, num deslocamento rápido de roupas ainda esfumaçadas. E então o primeiro trem, limites urbanos, um avião, navios, oceanos, continentes, uma casa qualquer e a solidão da fuga de olhos brilhantes.

Desapareci na confusão e comecei vida nova. Meus motivos já mofaram no afã de queimar documentos e falsificar certidões: emprego ruim, marido impotente, família horrível ou cotidiano massacrante – “mulher é considerada desaparecida ou pulverizada pela explosão” – no final, oficialmente morta em meio ao fogo, mas renascida num lugar bem distante dos cartazes já meio amarelados, pregados nos postes das estações de metrô como último registro de uma identidade destruída.

Sete anos depois, essa maldita mordida da curiosidade me fez voltar à capital para buscar nossa casa, estranhar a falta dos entulhos de sempre no jardim e, com os olhos pocados, encarar pela janela minha própria movimentação minuciosa no velho armário já esquecido, um pouco mais velha e gorda, refletida num espelho de tempo futuro, sem saber da vida ou da morte nem da minha própria identidade.

Patrick Brock, 26, publicou Velhas Fezes [Edições K, 2004] e Textorama [2005]. Email: brock@atarde.com.br

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