11.9.06

A ópera apoteótica do profeta operário

Por Wladimir Cazé
wladimircaze@gmail.com
&
Toni Couto
tonicouto@hotmail.com



Entre luzes chapadas e microfonias ensurdecedoras, surge o profeta Tom Zé, com sua inteligência verbal e sua extravagância tropicalista (sim), na Concha Acústica do Theatro Castro Alves, em Salvador, numa tarde de domingo, ao terceiro dia de setembro do ano de 2006. O senhor gabiru de quase 70 anos começa a bradar pelo microfone suas ladainhas para jovens cabeçarati, rastafaris culturais e remanescentes da 5ª Parada Gay de Salvador. A banda aparece e a primeira música do show é "2001", música gravada pelo menestrel de Irará em 1968, em parceria com Os Mutantes.

Tom Zé diz:

- "Pára tudo. Agora vamos tocar a opereta-pagode. Esse show é do meu CD do ano passado: ‘Estudando o pagode: na opereta segrega mulher e amor’. Resumo da história: o homem está desanimado, andando maltrapilho, macambúzio. A mulher ficou independente, muito exigente. É por isso que o homem aqui está vestido de mendigo."

Ele aponta para Jarbas Mariz (percussão, cavaquinho). Fala:

- "Tá vendo esse sujeito? Tem cabimento um músico se vestir assim, um marmanjo desse?"

Justamente por nada ter cabimento é que o “mendigo” Tom Zé está ali, um brasileiro que o povo conhece bem! Entretanto, é curioso que a pobreza só tenha conquistado alguma apreciação no universo cult através de um porta-voz que precisou recomeçar sua carreira nos Estados Unidos para se realizar profissionalmente enquanto autêntico compositor maldito da música popular brasileira.

Seguem-se as harmonias tensas e aparentemente caótico-dissonantes que o ex-aluno de Koellroutter e de Smetak na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia criou para as composições da opereta-pagode. Canções difíceis, onde diversos ritmos de samba comparecem radiografados pelos sismógrafos da vanguarda e do repentismo atemporal. Entreouvimos estilhaços de samba-de-roda, samba-canção, samba-enredo e bossa nova (citados na letra Antonio Carlos Jobim, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Menescal, Nara Leão).

Ele aponta para Luanda (vocal) e Cristina Carneiro (voz, teclados). Fala:

- "A mulher, não! A mulher aqui na ópera está vestida de operária!"

O argumento encenado prossegue, o homem propõe um tratado de paz com a mulher, para que vivam juntos. Brigam de novo. Nova reconciliação. Segue o baile.

A partir de um momento que não conseguimos lembrar, Tom Zé dá início a uma sequência de canções do disco "Estudando o samba" (1976), reconstruído em comemoração a seu aniversário de 30 anos: "Hein?" (Tom Zé/Vicente Barreto), "" (Tom Zé/Elton Medeiros), etc.

- "Em outubro deste ano, eu completo 70 anos! Vamos comemorar!"

A saga melódico-sentimental continua com um belo apanhado de composições conhecidas no universo cult. Pelo menos uma delas foi a pedido do público, a gritos e palmas: "Parque industrial" (hino tropicalista gravado duas vezes em 1968: em "Tom Zé", seu primeiro álbum individual, e no antológico "Tropicália ou Panis et circensis", com Gal, Caetano, Gil, Duprat, Mutantes, Nara et alli.):

- "Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.


Tem garota-propaganda
Aeromoça e ternura no cartaz,
(...)

(...)
Porque é made, made, made, made in Brazil!!!.
"

Tom Zé de novo:

- "O Ministro da Cultura Gilberto Gil me convidou para fazer um discurso na ONU e eu vou fazê-lo aqui, para ver se vocês aprovam” - anunciou o velho profeta, às vésperas das eleições, prestes a rasgar seu terno de velcro durante a apresentação da música-discurso ‘Politicar’, do disco ‘Com defeito de fabricação’ (1998).

Tom Zé de novo:

- "Pára, que essa música já tá chata! Vamos tocar outra!”

Mais do que maestro do espetáculo, o comandante do palco se anima mais ainda e lança um desafio para o público:

- "Todo mundo diz que baiano é inteligente! Quero ver agora! Vamos compor uma estrofe AGORA! Se preparem!"

Na velha tradição do improviso!!?? Nos perguntamos, já arriscando adivinhar o tema musical que ele escolheria para pôr mote. Era... como é mesmo o nome? “Jimmy renda-se”: “Lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá láááá!...” Que letra será que ele vai cantar em cima?...

A tarde parecia não ter fim, consideradas a quantidade de bis concedidos e a disposição física e criativa do artista, que gesticulava e se movimentava sem parar. Mas promessas ficaram não-cumpridas, a música que ele propunha que criássemos coletivamente naquele exato momento teve que ser adiada, porque a produção avisou que o horário estava encerrado, encerrado, encerrado...

A galera ficou com um gostinho de saudade na saliva, misturado com a realização de ter presenciado uma apoteose rara.

Vale ressaltar que, para participar do evento, foi necessário doar um livro e que Tom Zé fez questão de fazer sua doação no palco, entregando o seu “Tropicalista lenta luta” (publicado em 2003) – por sinal, uma ótima dica de leitura para quem quiser sentir a presença do artista durante mais algum tempo.

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