27.12.06

Êxtase

(para Nathanael West)

1

Sobre a mesa, o mesmo copo; no bolso, o maço mortífero; na boca, a brasa atenuante, prazerosa, de câncer esfumaçado. É o início da noite.

Do lado de fora, o vento sacode os postes em um inverno que teima em não nevar. Moro num pequeno quarto no centro de Newark e do outro lado da rua posso ver o movimento dos traficantes, os faróis dos carros que páram rapidamente para buscar crack, coca, ignorantes do vento ou do frio, incansáveis. Talvez eu devesse buscar algo para mim também.

Sou um zelador, faxineiro se preferir. Limpo os escritórios de um centro empresarial em Jersey City, perto daqui, onde a especulação imobiliária criou apartamentos de um milhão de dólares sob os escombros do entulho tóxico de um passado siderúrgico cromado, uma industrialização decadente que agora destrói os rios e o solo de algum outro país, talvez a China. Costumava ser casado, mas um incidente incômodo com cartas e mentiras me jogou para cá, neste cantinho barato no meio da pior parte da cidade.

Hoje aconteceu algo extraordinário. Costumo trabalhar no turno da noite, das sete às duas da manhã, mas a enfermidade de um colega forçou-me a trocar de horário. Recebi ordens de limpar os banheiros, levar a carga de lixo da manhã ao compactador e ficar na espera para qualquer eventualidade. Na salinha da limpeza temos uma pequena TV preto e branca, eternamente sintonizada no show de Oprah.

Por volta do meio dia, recebi uma chamada. Alguém derrubou comida no oitavo andar. Juntei os equipamentos e subi até o topo. Esperava encontrar um programador gordo ou um chefe rabugento, mas no departamento indicado encontrei uma jovem pálida, juntando os pedaços de macarrão do chão de maneira incômoda.

2

A moça tinha olhos muito verdes, do tipo ligeiramente oblíquo e que parecem apontar para cima nos cantos. O cabelo loiro escorrido, um vestido empresarial amarronzado e sapatos de salto baixo. Quando me viu, levantou-se desajeitadamente e sorriu. Esbocei a mesma nulidade de sempre e me passei o rodo Hydro-VAC 2078, sugando os pedaços de capeletti rapidamente. Depois me agachei para retirar as manchas.

Levantei os olhos e dei de cara com as pernas dela, a pele muito clara, a carne pulsante e levemente corada. Levantei-me. Ela continuou parada, me olhando casualmente, o rosto de feições aquilinas, elegantemente sofisticado.

Imaginei o que ela deveria estar pensando ao me ver, um cara comum, 45 anos, olhos cinza, cabelo desaparecendo, o nariz enlarguecido de pele extra por causa da idade, olheiras, poros grandes e escancarados. Os poros dela estavam todos fechados.

A cena devia estar estranha, então ela virou o rosto e murmurou um agradecimento. Recolhi meus equipamentos e voltei para a salinha. Tentei me concentrar na TV. Oprah entrevistava uma vítima de violência familiar que havia sido queimada pelo marido. Sua pele avermelhada e em reconstituição lhe dava um aspecto de boneca partida. A imagem permanecia mas as palavras ficaram nubladas, e pouco a pouco voltei a pensar na moça.

Ao chegar em casa, no início da noite, preparei meu jantar, um pouco de papa de aveia, canela, e sentei para comer. Quando terminei a refeição e coloquei a tigela na pia, liguei a TV, mas nada aconteceu. Voltei o olhar para a pia e notei uma imagem que se formava nos flocos de aveia umedecidos, algo como um ícone, um tanto irreconhecível no início mas que se definia cada vez mais à medida em que eu me concentrava.

3

Era a imagem de Jesus, como se fosse uma lembrança de infância, do catecismo, de religião perdida. Os olhos piedosos apontavam para cima, enquanto o rosto contrito, numa expressão de sofrimento, tinha na base as mãos abertas do profeta, as palmas para cima e a oferecer redenção.

Quando a imagem tornou-se inteiramente clara, me afastei horrorizado. Um horda de baratas cascudas voara do ralo da pia e a enchera com seus corpos betuminosos, espalhando-se pelas paredes da cozinha. Pisoteei os insetos freneticamente, esfregando seu caldo vital contra o chão até que fechei os olhos. Quando os abri, tudo havia desaparecido. Apenas a TV, que antes estava silenciosa, a falar de nevascas no Colorado e o prato com os restos de aveia amorfos. E o vazio.

Pisquei muito, esperando que tudo voltasse a ser como antes. Depois tive um pensamento estranho, sobre como as coisas eram antes; esperava minha mulher chegar do trabalho, bebíamos juntos, talvez um cigarrinho e uma refeição boa, quente, como ela sabia preparar. Amaldiçoei as mentiras.

Tivera uma visão? Acho que estou enlouquecendo. Fui até a janela. O movimento continuava. Um deles, um negro de cabeça raspada, brilhante, casaco espacial ultra-acolchoado, me percebeu na janela e encarou de volta com as pálpebras semicerradas. Começou a chover. Tivera uma visão?

Não me preocupei com casacos ou capas, apenas desci até o térreo, atravessei a rua. Todos eles pararam ao notar minha aproximação. Até os carros pararam. A chuva parou. O tempo, entretanto, continuava. Comprei uma pedra e voltei para o apartamento. Mal sabia como usá-la, mas eu sabia que tinha de ver de novo. Fumei a droga e sentei na mesa da cozinha, mas tudo que eu pensava era na loira do escritório, suas pernas coradas, seus poros. Lindos poros. Minha esposa tinha poros abertos, cheios de cravos.

Não consegui chorar, mesmo sentindo um rio morto empurrando as comportas da minha contrição áspera. Enquanto isso, ao meu redor, as paredes derretiam.

Miss Lonelyhearts

Nenhum comentário: