14.12.06

Ramadi

Para Raymond Carver

As cartas chegaram juntas, no meio de contas a pagar e ofertas de cartão de crédito, como todas as coisas cotidianas do correio. A primeira era uma carta do filho dela no Iraque e a segunda, do departamento da Defesa. Abri a segunda.
“Lamentamos informar à Sra. que seu filho Jason Wurlitz faleceu em combate na Província de Al-Anbar, próximo de Ramadi...”
Respirei fundo, larguei a carta na mesa e fui até a cozinha servir um Jack Daniels puro. Depois de uns goles, comecei a pensar melhor. Ele era meu enteado. Conheci Liza há uns dois anos, quando ele já estava em treinamento num desses campos militares com nome de general heróico. Então mal o vi, exceto pelos jantares de Natal, quando ele me olhava desconfiado do meu uísque e do meu cigarro. Eu sabia que ele estranhava o fato de que sua mãe, corajosa mãe solteira que o criara em meio a dificuldades e com todo o carinho do mundo, resolveu juntar os trapos com o zelador da escola municipal. Mas eu não estava nem aí. Ele que explodisse em alguma armadilha numa estrada desértica do Oriente Médio.

Só que agora, segurando a missiva com a tenebrosa notícia, eu me sentia menos arrogante e mais preocupado. Como é que eu ia contar para ela? O moleque era seu único filho – aos 45, já não podia procriar depois de ter tirado o útero. Mas o que ela esperava? As pessoas mandam seus filhos para a guerra e pensam que será um passeio na praia. Quem me dizia isso era um português maluco que conheci quando trabalhava limpando escritórios em Jerséi City. Fumávamos uns cigarros tremelicando de frio e ele me contava essas histórias de peixe, de pescaria, de como sobreviveu a um naufrágio na costa de Moçambique se agarrando a um farol no mar, o corpo arranhado pelos mariscos até que as nuvens fugiram do céu e sobreveio a calmaria; enfim, mas ele gostava de dizer que os americanos acham que a guerra é videogame, que é fácil, e se espantam quando seus filhos voltam para casa em caixas de metal, enrolados na bandeira vermelha, azul e branca.

Enquanto eu pensava nisso, uma luz brilhou do lado de fora e ouvi o barulho do carro chegando na garagem. Escondi a carta embaixo da almofada na poltrona e sentei lá, morto de medo, o copo ainda na mão. A porta abriu e ela entrou cheia de sacolas.
- Bob! Comprei um casaco novo pra você e umas frutas, você está precisando comer mais frutas, em vez de ficar aí fumando e bebendo...o inverno está chegando, temporada da gripe, aí você fica tussindo e não me deixa dormir.
Ela estava radiante, devia ter fruído de um dia esplêndido na sorveteria, onde passava o dia servindo iogurte congelado com granola, nozes, amoras, morangos.
- Alguma carta pra mim? – perguntou e eu gelei. Havia esquecido a outra carta dele em cima da mesinha da sala. Ela captou o envelope e o abriu ávida.
- Carta de Jason! Olha só, ele diz que as coisas estão mais tranqüilas, o Natal está chegando e vamos ter um jantar especial aqui na base, com peru e molhos e purê de batata e quem sabe um pouco de vinho...na lanchonete da Halliburton só tem cerveja aguada... – deu uma risada – acho que o tenente gosta de mim, me tirou das patrulhas, estou fazendo trabalhos perto da base, tarefas humanitárias, eles dizem...
Ela continou lendo e fui diminuindo até me sentir uma formiga naquela poltrona imensa, acolchoada, um modelo padronizado “Preguiçosa” onde milhares de zés ninguéns como eu estavam sentados na mesma hora, morrendo aos poucos de doenças cardiovasculares ou coisa assim. Sequei o copo de uísque e acendi um cigarro.

Ela terminou de ler a carta e se jogou no meu colo, deu um beijo estalado no meu rosto.
- Estou feliz que Jason encontrou seu caminho. Teve uma época que eu achava que ele ia acabar virando criminoso, ahá, porque as crianças ficavam provocando ele na escola, “você não tem pai, você não tem pai”, são uns diabos maldosos. E você, tem alguma novidade?

Se o mundo parasse de rodar naquele momento eu agradeceria. A carta embaixo do assento queimava como algo incurável, uma enfermidade súbita. Como é possível se destruir a felicidade de uma pessoa?
- Eu te amo.
Ela me beijou. Depois fomos para cama. Talvez amanhã, pensei, eu conte tudo. A felicidade, mesmo que efêmera, é importante demais para se estragar. Fizemos amor como se fosse a primeira ou a última vez e dormimos na tranqüilidade, como os sobreviventes de um naufrágio quando encontram a praia salvadora. A carta sobre o filho dela me atormentava, mas repeti para mim como um mantra até perder a consciência em nossa cama confortável: talvez amanhã, talvez amanhã.

Victor Burton

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