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A PARTIDA
Salvador 18h30 - 10/12
após uma tarde de correria, notícias rápidas passando pela mente, dores leves e ominosas na mão esquerda, a partida se dará nesta ave de aço e técnica, não pude evitar de observar as pessoas, atendentes, passageiros. As atendentes são belas e limpas como tudo o mais neste lugar desinfectado. A repulsa é substituída por pensamentos melhores, em algum lugar, perdida no meio da cidade clara, ela trafega entre sinais coloridos e gás de escapamento.
Entro no pássaro e a música new age amacia meus ouvidos, apertados entre cadeiras próximas demais e hálitos fortes demais, me preparo para o pseudo cosmopolitismo do lixo e da fúria citadinas. Me preparo para o grande teatro bem elaborado, uma peça financiada pelos meus sonhos, um pequeno mundo promissor e contraditório onde oscilo entre o positivismo e a vontade de auto destruição.
A ave se mexe, balança as asas, solta um zumbido baixo que vai crescendo até se tornar um urro como o de espíritos sendo banidos.
NIGHTCLUBBING NA URBE
são paulo 22h30 - 10/12
A cidade se revela maligna, por trás de nuvens avermelhadas como o enxofre dos fogos do inferno. Sou engolido pelo tráfego de gentes de todos os tipos pelos acanhados corredores de Congonhas. Primeiro desafio: um cartão telefônico, sete reais, tudo é tão caro e o telefonema fatal no terminal onde todos devem ter celular.
A ação acelera novamente, cruzo as avenidas com Márcio, um taxista simpático e ignorante a quem dou um livro e ainda pago vinte e cinco reais da corrida. Transferência: descendo a Tamandaré, próximo à estação vergueiro, noite fria e densa, me perco na rua Castro Alves! Discados os dígitos necessários, Homem Gabiru orienta meu caminho e adentro a José Getúlio, jovens encapotados observam o movimento em bares de balcão sujo e formiplac, edifício La Boheme se revela para mim. Gabiru me recebe com a camisa belo horizontina "libertas que será tamém" e fumamos. E fumamos. Comemos pizza paulista, da gorda, e Benflogin chega, olhos soturnos, alto, leve descendência oriental.
As ruas aromáticas e oleosas cruzam viadutos sobre avenidas cancerígenas de vidas diluídas ((C) TEXTORAMA). A boate é conhecida, quer ser um inferninho de Satã mas é apenas um gaiola enegrecida onde a juventude da urbe se esfrega e enche a cara de cerveja Itaipava - "demorou", diz o barman de classe média e costeletas de Elvis Presley quando demoro a decidir pela serrana em detrimento da shkou.
Saúde! Na pista de dança perfumada meus pensamentos voltam para ela, telepatia horrenda e sincera entre luzes estroboscópicas, acho que vi a Clarah Averbuck passar com um cara de sobretudo de couro preto, Benflogin começa a filosofar e um Skinhead musculoso e sua namorada de rímel borrado cruzam a sala ampla e refrigerada, batendo-se em todo mundo sem necessidade.
Gabiru some e reaparece, sua embriaguez aumenta, fumamos sob o olhar espantado da juventude paulistana, bebemos e enchemos o saco da banda estilo barão vermelho que ora toca pérolas do camisa de vênus e ora toca standards cazuza/frejat. A noite é nossa e é fria, durmo feliz sem cobertor e acordo terrivelmente gripado.
BACALHAU PEQUENO
09h57 São Paulo 11/12
Preciso almoçar, combustível adiposo, mas Gabiru ri de mim, resistente, nordestino, fakir. Andamos eternamente pelos próximos trinta minutos, discutimos pelo caminho maior, eu queria subir a ladeira. A fome me embrutece e subitamente estou no metrô, veloz e silencioso. Saltamos numa corrente humana que nos arrasta para todos os lados, o mercado municipal decepciona com seus bares de tiragosto onde famílias bebem Original e saboreiam pequenos e insatisfatórios bolinhos de bacalhau.
No Bixiga, somos acuados na rua por um garçom psicopata que nos oferece fatias de queijo gouda, rico, e entramos num rodízio suspeito. Tudo é nhoque, o frango é salgadíssimo e comidas italianas loucas passam por nós velozmente, mais pessoas chegam, preciso telefonar e me satisfaço rapidamente com a comida enganadora. É tudo uma grande mentira, todo o restaurante, as camisas de futebol penduradas no teto, o velhinho tocando músicas italianas num teclado barato, a filha do dono a nos servir nhoque frito (?!) e conexões se formam, o impulso elétrico da minha voz desce pelos cabos subterrâneos até uma subestação onde é direcionado para a central e depois viaja via satélite para etc etc até o outro lado da linha, onde atende uma garota sonolenta e suave em um apartamento de um prédio de três andares no coração da Pituba, leste de Salvador.
Não há mais tempo, voltamos para a Liberdade, fumamos mais, carregamos a sacola com livros e sonhos, metrô vila madalena e a caminhada desagradável com cinquenta livros nas costas. A mercearia, seus conflitos e bairrismos, chegamos e encontramos Astrazenecon e família, primeiras cervejas, Obelix e seu display poderoso, rangos esquisitos (sementes de ábobora e pinhão seco) hordas humanas, revista F. nos arredores, pouca interação, mulheres lascivas, estrangeiras irritantes, notas acumulando, cervejas entornando, embriaguez aumentando, Kulshedra chegando.
A Kulshedra tem olheiras profundas e mastiga sem parar seus cigarros, olhando discretamente o enxame bufento e interessante que come bebe conversa. A noite nunca acaba, há uma festa da demolição, não conseguimos achar, Mick dirige simpático e suas energias boas fluem pelo Ka em que nos aglomeramos. Desistimos da festa e acabamos na cova da Kulshedra, bebemos mais, fumamos mais, Benflogin tem um ataque de epilepsia e ejacula sobre si mesmo, deita no chão onde passa a roncar enquanto derramamos cerveja em seu rosto, Obelix desaparece com uma pequena de olhos febris, nos dispersamos, Benflogin acorda novamente e sentamos para conversar, ataques de ansiedade no pobre rapaz, nos reunimos novamente na cozinha e há um cheiro adocidado no ar, de excitação seca no corpo de alguém.
RESSACA DOURADA
são paulo 12/12 - 12h03
A grana contada repousa ao meu lado, a ressaca dourada brilha em meu cérebro. Saio pra comer com Obelix e não encontramos nada aberto na Aclimação, apenas um lugar regional e pretensioso onde os clientes encaram meu cabelo em pé. Os espetinhos são bons e conversamos de verdade pela primeira vez desde que nos conhecemos, na Feira do Livro de POA em 2002. O dia segue lento, mais passeios pela Liberdade, compro ervilhas de raiz forte como lembrança.
EPÍLOGO
salvador 12H19
O idílio está encerrado, todas as memórias foram fotografadas e mais um pássaro gigante quer alcançar o céu, trocarei de novo as ruas hécticas e aromáticas de pus e yaksoba pelo sol biomassa da cidade clara, paisagens vastas e familiares, no suprises, eterno retorno, intenso, voraz apetite, de sonho, roubei sua alma, e depois comi, num lapso de tempo, esqueci de envelhecer, me conte agora, qual é a sua mentira?
Durante três dias andei pela cidade, que me convida a uma vida nova e perigosa, minhas correntes voluntárias são grilhões da mente. Como na Colônia Penal, sou reeducado por uma máquina simbólica, opressora, que repete sua mensagem mil vezes enquanto durmo, acordo, cago, como e amo.
Andamos muito e choramos às vezes, vozes roucas e sistemas nervosos afetados pela farmacopéia, centopéias de sentimentos passeiam no jardim da sua alma. Minha couraça protetora forma um campo magnético que mata tudo, mas do lado de fora as árvores crescem sob a égide de microorganismos fluorescentes.
Minha sede é grande, entro em delírio, quatro minutos de cansaço e vinte horas de berros, o brilhantismo de uma vida perdida nas abas de meu chapéu de cowboy nordestino que tem medo de cavalos e não usa esporas.
A cidade clara surge familiar, minha boca seca, penso nos beijos que não tive na noite feliz, nas mãos não afagadas e nos momentos de êxtase das lágrimas contidas por medo da dor, uma represa estancada, mas uma alma suave me ajudou a recuperar a sanidade. Acho que estou bem agora, doutor, mas preciso ir no banheiro. Posso ir?
Os freios são acionados e reversores hidráulicos me ensurdecem.
Al Nite Lang
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