20.1.06

Carta ao nada



- Te encontrei no chão, pai, e pensei que podia te reviver. Liguei pra a ambulância, demorou vinte minutos, tempo demais pro meu desespero. Suas pupilas estavam congeladas. O sangue acumulava nas costas. Te estapeei, dei socos no seu peito. Porque você não se cuidou? Você queria que eu cuidasse de você? Como é que eu podia cuidar de você? Eu não consigo nem pagar minhas multas de trânsito. Eu apenas podia te amar em silêncio. Porque foi logo nessa época? No meio do meu inferno astral supremo, com gosto de sentimento agridoce, de lágrima contida. Depois, o ritual. Pediram que escolhesse uma camisa para você vestir no caixão, mas minha mão deslizou pelo tecido branco e desabei. Eu não estava sentido pena de mim mesmo, nem de você, só sentia um gosto estranho na boca, sabor de tristeza. Já se passaram dois anos, mas ainda sinto a língua travada quando deito a cabeça no travesseiro e lembro de tudo até perder o sono. Agora minha memória está ótima, cada vez mais afiada esses dias. Ela me lembra de tudo que eu gostaria de esquecer. Agora esse Sol esquentando a grama, todas as pedras iguais com nomes, números e dedicatórias pré-prontas, jazigos onde depositamos quem amamos porque não podemos mais tê-los entre nós. Os vermes estão me comendo também, por isso que estou aqui agora, falando com o nada, tentando sentir alguma coisa, mas tudo que passa pelo meu sangue é uma dor de ferida mal curada, de pus sentimental. Ontem abri uma gaveta empoeirada e achei teus óculos, teu relógio ainda funcionando. Cai no chão, mas eu não conseguia chorar, só aquela torrente de lembranças apagando tudo, as obrigações cotidianas, a louça pra lavar, o fedor do meu corpo e o cheiro da sua colônia. As coisas todas ficaram aí, teu creme de barbear que usei até acabar, a casa onde moramos, o amor que vivemos entre palavras cúmplices e tão difíceis de dizer. É por isso que eu vim aqui agora, por isso que não consigo esquecer, por isso que a saudade volta em ondas quando acho que vou enlouquecer com o fluxo das coisas e sinto a obrigação de fazer todas essas perguntas, mesmo que você não possa mais responder.

Dizendo isso, ele virou as costas e foi pegar o carro no estacionamento. Um pássaro defecou na grama. Ligaram os regadores. As flores continuaram apodrecendo. A vida prosseguiu com um sentimento confinado de dor.

Al Nite Lang/janeiro de 2006

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