26.5.04

O MILAGRE


Saiu do armazém colocando a garrafa de meio litro de cachaça embaixo do braço. Passava das três da tarde e era seu primeiro dia de quase desempregado. No último melancólico mês em seu emprego tem o direito de sair duas horas mais cedo para, supostamente, procurar um novo emprego. Mas não é o que ele, como estou dizendo para vocês, pensa. Passa no armazém e compra uma garrafa barata de plástico. Uma garrafa de velho barreiro de meio litro. Gordinha. Fofinha. Baixinha. Quase erótica. Começa a cair uma chuva fria de maio. A massa de ar polar invadindo Porto Alegre e rasgando sua topografia de sul à norte. De oeste à leste. Chega em casa, molhado e com frio, guarda a cachaça na geladeira e abre uma lata de cerveja. Liga a televisão e assiste um filme da sessão da tarde. Duas horas e seis latinhas depois, ronca grotescamente em frente ao televisor. Acorda com o barulho da campainha do apartamento. É o síndico que vem lhe entregar uma notificação do condomínio cobrando três meses de atraso. Nem tem mesmo vontade de xingar ou mandar o síndico tomar no cu que é o que ele merece, pensa ele. Fecha a porta na cara do sujeito sem nem bom dia sargento. Joga a notificação em cima da mesa da cozinha e vai até a geladeira. Bebe um gole de água gelada e se lembra da garrafa de cachaça. Boa hora para se começar a encher a cara, pensa o quase desempregado.

Quando abri a garrafa ainda estava meio bêbado e zonzo com tudo aquilo. Receber a notícia que estou sendo demitido e uma notificação de atraso de pagamento de condomínio na mesma tarde é demais. É demais! Pior de tudo era ficar mais trinta dias trabalhando e ensinando um estagiário fedendo a merda o trabalho que eu fiz por mais de seis anos. E as leis trabalhistas e o caralho, porra nenhuma. Contrataram um borra-botas no CIEE e eu que me fudesse. A pressão corria atrás de mim. A pensão da minha filha que a vaca da mãe dela gasta em badulaques e festinhas com os idiotas dos amigos dela. Não me lembro onde estava com a cabeça quando trepei com essa doida. Lembro sim. Estava bêbado. E minha filha ainda vem e me pergunta. Pai, o que é fracassada? Eu não respondo. É que é a mãe disse pra eu estudar direito no colégio pra não ser uma fracassada. Não respondi de novo. Peguei ela pela mão e a levei até o McDonald's. Ela ficou quieta observando os desenhos nas paredes. Eu fiquei quieto observando as coxas de uma das mães que estava sentada em outra mesa. Minha filha notou que eu estava olhando para as pernas da mulher e pediu. Pai, me paga outro milk shake.

Depois de aberta a cachaça, ele encheu um copo pequeno e despejou o primeiro gole no chão. Uma névoa espessa surgiu e dela saiu um homem grande todo vestido de branco e pés descalços. Quem é você? Perguntou. Eu sou o santo, amigo. Quando alguém joga um gole no chão para que o santo beba, sou eu que bebo. Mas eu nunca vi porra nenhuma de santo sair de um gole de cachaça. Arrá, meu amigo. Isso não acontece com qualquer um. Só para uns poucos escolhidos. Já pensando que estava bêbado, Eric, desculpem-me, esqueci de apresentá-lo antes pois sou um narrador muitas vezes debochado, outras vezes, arrogante, não me dou conta que vocês não conhecem a história, bebeu o resto do copo sem dar-se conta que ainda não tinha bebido nada. Tá. Mas e porque eu? Isso não lhe interessa agora, Eric. Como você sabe meu nome? Calma, não foi nenhum de vocês que avisou o santo, não foi?, eu sei porque eu sou santo, Eric. Quando eu apareço para alguém é lhe dado o direito de exigir um milagre. Calma. Você tem tempo para pensar. Enquanto o milagre não for executado, você pode me chamar a qualquer momento. É só jogar um gole de cachaça no chão. Assim. E o santo joga um pouco de cachaça no azulejo amarelado de sujo da cozinha do apartamento de Eric e desaparece em meio a uma névoa espessa e com fedentina de álcool.

No fim-de-semana Eric encontrou sua filha. Foram ao cinema assistir um filme da Disney. Antes do primeiro gole num copo de meio litro de coca-cola, Eric tropeçou numa dobra do tapete na escadaria do cinema. Logo depois apareceu o santo, sentado ao seu lado.

Mas esse desgraçado não aparecia só com gole de cachaça?

Sei o que está pensando, Eric. Que eu só aparecia quando você estivesse bebendo cachaça, não é? Eric não responde. Estão passando os comerciais antes do filme. Somente acena com a cabeça. Sua filha pergunta qualquer coisa. Ele não escuta. Então, Eric, já decidiu qual vai ser o seu milagre? Olha aqui sua assombração, minha vida já tá uma merda. Vê se some. Quer calar a boca aí, ô abobado, grita alguém sentado mais para cima. Tá falando sozinho, pai?

Desgraça de vida. Agora minha filha vai pensar que eu sou doido. A única pessoa que presta nessa porcaria toda e vem esse coiso aí, esse panaca vestido de branco me assombrar. Deve ser fruto da imaginação. Algum delírio que vai passar com o tempo. Não entendo nada dessa história de auto-sugestão e o cacete. Nem religioso eu sou. Quanto mais pra enxergar um maluco vestido de pai de santo. Ainda eu sou o escolhido? Deve ser um trote. Olho pra minha filha. Ela presta atenção no filme. Ela não enxergou nada. Só eu enxergo. Como faz pra esse coiso ir embora? Será que vai ficar aí? Até o final do filme? E ainda por cima cortando as unhas do pé?

Eric começou a se cuidar. Toda a bebida que pegava em suas mãos, largava com toda a calma em cima de algum lugar plano e seguro, sem que existisse a mínima chance de cair alguma gota no chão. Tinha medo de contar o que tinha ocorrido para alguém e ser chamado de louco. Serviu à paranóia sem que os outros notassem que se tratava de uma paranóia. Até mesmo negou convites para beber com os conhecidos. Saía mais cedo do trabalho e ia direto para casa. Comprava os classificados de jornal e procurava. Um emprego atrás do outro. Telefonava. Mandava currículos pelo correio. Pela internet. Quando podia, entregava pessoalmente. Logo iria chegar o dia da rescisão e ele sabia que o seguro-desemprego e o FGTS eram só pra pagar as dívidas. E não seria uma visão patética de um cara vestido de branco que o faria acreditar em milagres.

Depois de três semanas tentando encontrar um emprego, decidiu que era hora de parar com aquela paranóia. Dia e noite, só pensava na maldita assombração e no medo de enlouquecer. Se fosse para enlouquecer, que fosse de uma vez só. Foi até um bar perto de sua casa e pediu uma cachaça. Mal o copo pousou sobre o balcão, jogou o gole do santo no chão e o cara de branco surgiu de novo. Como vai, Eric? Pensei que tivesse esquecido de mim. Qual é o seu milagre, Eric?

Agora eu pego essa assombração desgraçada. Não é nenhum milagre, comecei a falar bem alto, mas era cedo da manhã e eram poucas pessoas no bar, um que outro consumindo apressadamente uma média antes do trabalho. É um pedido bem comum, santo. O dono do bar limpava um copos enquanto esperava o café encher uma xícara e observava com o canto do olho. Estava acostumado com loucos. Se não estivesse, não seria dono de um bar. Eu quero um emprego.

Não seja por isso, respondeu o santo. Se é um emprego teu milagre, um emprego terás. E sumiu por entre uma névoa espessa cheirando a vinho barato. Cinco minutos depois, um homem tropeçou na rua e deixou cair seu laptop no chão. Eric saiu do bar para ajudá-lo a se levantar. Juntou o laptop e devolveu ao homem. O homem ajeitou o terno, arrumou a gravata e encarou Eric. Ei, você não trabalha na empresa ...? Eric já quase virando de costas, completou. Trabalhava. Trabalhava? Mas como te mandaram embora? Me lembro de você. É justamente quem estou precisando lá na minha empresa. O homem lhe entregou um cartão, pediu para que ele lhe ligasse mais tarde e foi embora, apressado.

Seis meses depois, caminhava pela Cristóvão Colombo quando decidi entrar em um bar. Estava chegando o natal, um calor desgraçado, eu cansado, e não tinha um puto no bolso. Nem pra comprar uma lembracinha pra minha filha. Mas ainda restava algum pruma cerveja. Entrei em um bar na altura da Ramiro Barcelos e me encostei no balcão. Peguei do copo de cerveja e, sem pensar, joguei um gole pro santo. Senti um frio percorrendo a espinha e olhei para o lado já sabendo o que me esperava.

Ei, você não disse que fazia um milagre? E não fiz? Respondeu o santo bocejando. Não te consegui um emprego. Ah, tá falando daquele emprego? Sim. Era um emprego sim. Mas o salário era uma bosta. Eric, Eric. Eu falei que fazia milagres. Não o impossível. E bebeu da cerveja de Eric.


Marcelo Benvenutti
www.conto.com.br

Nenhum comentário: